O mundo dos espíritos e as práticas mortuárias
dos Índios Norte Americanos
[Tradução: Eva Paulino Bueno]
Desde os
tempos mais antigos, os Índios Norte Americanos
[1]
tinham algumas similaridades muito
significativas. Entre estas, destaca-se a profunda conexão
espiritual com o mundo natural. Entre as tribos e nações
nativas americanas há uma forte tradição animísitica que
aceita a existência de um mundo dos espíritos e a interconexão
entre os humanos e este mundo dos espíritos. Na realidade,
tal característica pode ser encontrada na maioria das
populações indígenas de todo o hemisfério. A crença em
espíritos é geralmente refletida em muitos aspectos da
vida índia, incluindo os costumes mortuários.
Deve-ser
notar que os processos históricos e políticos de aculturação
e assimilação têm tido um tremendo impacto nos índios
Nativos Americanos nos Estados Unidos. Embora alguns elementos
do passado persistem, as práticas mortuárias têm sido
consideravelmente alteradas, e continuam a mudar, como
resultado destes processos aculturativos. Este trabalho
focaliza algumas práticas mortuárias tradicionais que
ilustram como as crenças animistas dos americanos nativos
afetaram tais costumes.
No mundo
espiritual da maioria dos índios Nativos Americanos, os
seres humanos possuem um ou mais espíritos ou almas que
deixam o corpo quando a pessoa morre.
[2]
No passado, era crença comum que a
alma da pessoa morta viajava ao longo da Via Láctea até
chegar ao mundo do além. Para ajudar a alma nesta jornada
era comum, portanto, incluir várias coisas ao enterrar
o corpo. Estas coisas eram geralmente as que o morto possuía
e que ele poderia necessitar na vida do além. Por
exemplo, entre os índios Lakota da região dos Plains (uma
região de planície no centro dos Estados Unidos), o equipamento
de caça seria enterrado com um homem, e as coisas necessárias
para a costura seriam enterradas com a mulher. Algumas
tribos, tais como os Lakota e os Blackfoot, também sacrificavam
o cavalo favorito da pessoa morta.
[3]
Às vezes vários ou muitos cavalos seriam
mortos se a pessoa falecida fosse importante ou possuísse
muitos cavalos. Diz-se que um chefe Blackfoot possuía
mais de 4.000 cavalos, e quando ele morreu uns duzentos
cavalos foram sacrificados. Entretanto, se o morto vinha
de uma família pobre e não podia sacrificar um cavalo,
somente a crina ou o rabo seriam enterrados com o falecido.
Entre alguns
grupos tribais a alma da pessoa não seria liberada para
a viagem antes que se fizesse uma festa na comunidade.
A "festa de dez dias" dos Mohawks da região
nordeste era um rito funerário como este. Nesta festa,
discursos e condolências eram feitos e então as posses
do morto eram distribuídas entre os convidados. Era
durante esta festa que a alma do falecido seria liberada
para começar sua jornada ao longo da Via Láctea, até chegar
ao outro mundo. Os Teton Lakota tinham um costume semelhante,
mas era mais pronunciado quando o morto era uma criança.
Neste caso, a alma da criança era conservada por um ano
em um "pacote do espírito" especial, que tinha
uma mecha do cabelo da criança. Durante o ano a família
faria preparações para a festa, acumulando grandes quantidades
de comida, tecidos, cavalos e outras coisas. No final
deste "ritual para a conservação do espírito",
os pais davam uma festa e distribuíam todos os bens acumulados.
De fato, tudo, incluindo o "tipi" — a tenda
que era a casa da família — eram distribuídos, e a única
coisa que ficava com a família era o pacote do espírito,
que era aberto, e liberava a alma da criança. A comunidade
então doava bens suficientes para a família da criança
morta poder recomeçar a vida de novo.
Os espíritos
dos mortos eram algumas vezes temidos, e precauções tinha
que ser tomada quando uma pessoa morria. A maneira da
morte era um fator que fazia algumas almas mais perigosas
que outras. Por exemplo, os Choctaw do sudoeste acreditavam
que a alma de uma pessoa morta na guerra, ou por bruxaria,
ou por homicídio não começaria sua viagem ao além antes
que a sua morte fosse vingada. Eles também acreditavam
que mencionar o nome do morto era potencialmente perigoso,
e por isso existiam regras que proibiam os vivos de usar
os nomes dos mortos por um certo período de tempo. Os
Navajo
[4]
do Sudoeste acreditavam que a alma
de alguém morto por raio era tão perigosa que eles nem
sequer faziam nenhum ritual funerário. Em tais casos,
a pessoa e o hooghan
[5]
eram simplesmente queimados e abandonados.
Os índios Shoshon também temiam os espíritos ou fantasmas
daqueles que por qualquer motivo permaneciam na terra.
Sonhar com as pessoas mortas também era considerado de
mau agouro.
O imenso
medo dos mortos é provavelmente melhor ilustrado com os
costumes funerários dos Navajo. Os Navajo acreditavam
que os mortos eram entidades potencialmente perigosas,
e portanto eles tomavam cuidados muito especiais nos seus
rituais. Tradicionalmente,
o enterro de um ente querido era mais uma pequena cerimônia
particular, ao invés de uma cerimônia pública. Apenas
alguns poucos indivíduos tomavam parte na preparação do
corpo e do enterro. Poucas pessoas queriam se expor aos
perigos que os espíritos dos mortos representavam. Quando
uma pessoa morria, a família do morto contratava quatro
especialistas (lamentadores) para prepararem o corpo para
o enterro. Estes lamentadores contratados lavavam o corpo
e o vestiam em roupas finas, mas tinham o cuidado de colocar
os mocassins da pessoa morta nos pés errados, ou seja,
o pé direito no esquerdo, e o esquerdo no direito. Isto
assegurava que o morto teria dificuldade de caminhar de
volta para sua aldeia. Além disso, o corpo algumas vezes
era carregado através de um buraco especial feito no hooghan
de maneira a não contaminar a entrada normal usada pelos
vivos. Os que participavam do féretro permaneciam calados
enquanto carregavam o corpo para o lugar do enterro, que
podia ser em um lugar isolado, ou numa boca de caverna
que poderia ser selada. Assim como os membros de muitas
outras culturas nativas americanas, os Navajo colocavam
alguns objetos com o morto, e, como os Lakota, eles algumas
vezes também sacrificavam o cavalo favorito do falecido.
As ações
tomadas depois que o corpo era enterrado também refletiam
o medo que os Navajo tinham dos espíritos dos mortos.
Uma vez que o corpo era enterrado, os objetos funerários
eram quebrados ou estragados. Depois do enterro os participantes
voltavam à aldeia por um caminho diferente, e ao invés
de caminhar eles iam saltando e pulando, para se assegurar
que o espírito do morto não os seguiria. Os participantes
então se purificavam com fumaça e ficavam dentro de suas
casas por um período de luto de quatro dias.
[6]
A aculturação
tem certamente afetado muitas destas práticas mortuárias
até mesmo entre os índios que permaneceram nas reservas.
[7]
Hoje não é incomum ver práticas mais
semelhantes àquelas praticadas pela sociedade americana
em geral do que às tradicionais.
Apesar
disso, muito da espiritualidade e do animismo do passado
permanece, e a interconexão entre o mundo dos espíritos
e o mundo dos vivos está claramente refletida em algumas
destas práticas funerárias. Se os espíritos dos mortos
são ainda temidos ou não, obviamente não se questiona
que os Nativos Americanos retiveram seu profundo respeito
por seus ancestrais. Nada mostra este respeito mais claramente
que a luta dos índios para recuperar os ossos e outros
restos funerários que foram encontrados em vários cemitérios
indígenas e removidos para estudos científicos. De acordo
com uma longa tradição espiritual, os Nativos Americanos
desejam que os restos mortais de seus ancestrais sejam
propriamente enterrados.
[8]

[1]
Nos Estados Unidos, os descendentes das populações indígenas
são chamados índios Americanos ou Nativos Americanos.
Eu uso ambos termos nesta discussão, mas faço notar
aqui que o termo preferido atualmente é Nativo Americano.
[2]
Os costumes descritos neste trabalho podem ser encontrados
em Native Nations, de Nancy Bonvillain (Prentice-Hall,
2001), que traz uma história antropológica das nações
nativas. Esta referência dá uma história cultural geral
dos Americanos nativos da América do Norte. Outra fonte
para o mesmo assunto é o livro de Alice Kehoe, North
American Indians (Prentice-Hall, 1992). Estes dois
livros cobrem várias nações da América do Norte por
região cultural.
[3]
O cavalo foi introduzido aos índios Americanos nos anos
de 1600, e eles rapidamente se tornaram cavaleiros exímios,
especialmente os índios da região dos Plains. O cavalo
se tornou uma fonte de riqueza e prestígio entre alguns
grupos.
[4]
O nome próprio dos Navajo é Diné, mas o termo
Navajo é mais usado. Os estudiosos notaram que o termo
Navajo originalmente veio do espanhol para indicar "os
Apaches de Nabaju," que por sua vez derivavam da
palavra que os índios Tewa chamavam os Diné.
[5]
Termo Diné para a casa Navajo tradicional, geralmente
construída de terra e madeira.
[6]
Um bom texto sobre o luto, os costumes funerários, e
outros assuntos contemporâneo entre os Navajo pode ser
encontrado em Navajo Lifeways (University of
Oklahoma Press, 2001), de M.T. Schwarz.
[7]
Os índios das reservas atualmente tendem a ser mais conservadores
e tradicionais que os seus compatriotas urbanos. Entre
as várias reservas nos Estados Unidos, a da nação Navajo
é a maior, compreendendo aproximadamente 17 milhões
de acres.